Relacionamento sério



Moravam juntos já fazia mais de dois anos, e numa quarta-feira ela jogou pra ele uma revista enquanto tomavam café da manhã:
- Tá vendo?
Ele leu o enunciado da reportagem e não sabia bem o que responder. Um casal famoso tinha terminado seu relacionamento porque um adorava redes sociais e o outro era tecnofóbico. O que ela esperava dele? Logo dele que só ligava o computador para planilhas e e-mails!
- Mas eu não vejo sentido no Twitter, amor - procurou se explicar.
- Tenta.
E para atender o pedido quase intimação de sua querida, ele foi tentar. Sentou no computador e criou seu perfil no microblog. Seus amigos ficaram felizes em tê-lo por ali. No primeiro dia saiu para o trabalho e a cada sinal vermelho procurava algo que pudesse postar. Postou foto do cara que faz malabarismo, do menino que vende balas, teceu comentários, interagiu e começou a gostar da coisa. Semanas depois, ele mesmo se dizia tuiteiro.
Ela se sentiu feliz ao ver não só que ele tinha se esforçado para fazer parte do mundo dela, mas por perceber que tinha gostado. Ele parecia mais animado no relacionamento ao ver através da rede o quanto ela o admirava. Todos os amigos percebiam que o relacionamento do casal tinha melhorado, os dois conversavam mais, se compreendiam mais, tinham mais assunto, passavam mais tempo pensando um no outro.
Pouco tempo depois alguém sugeriu que tivesse um perfil em outra rede social, onde poderia ir além das frases curtas e lá foi ele se aventurar em mais um campo desconhecido. Pela experiência anterior aceitou a sugestão com boa vontade e se viu novamente diante do computador criando seu perfil. Pensou que ela iria gostar de ver a surpresa quando voltasse do trabalho, montou um álbum com fotos dos melhores momentos que tinham passado juntos desde que se conheceram, colocou na legenda de cada foto uma frase retirada das músicas ou dos filmes preferidos dela. Os amigos estavam curtindo cada foto postada, comentando sobre como tinham sido feitos um para o outro, quando ele finalmente foi ao perfil dela para adicioná-la e escrever algo em seu mural.
Deu um murro na mesa! Não acreditara no que viu. Olhou de novo e puto da vida ligou pra ela.
Por telefone, com olhos mareados, raiva na voz e coração partido, pôs um fim na união que completaria três anos, depois de ver que ela havia marcado apenas como namoro aquilo que ele considerava um relacionamento sério.
Postou o verso de uma música com o link pro You Tube: “She's going to smile to make you frown, what a clown!”, desligou o celular, saiu batendo a porta, preferiu descer pelas escadas. Ainda meio desnorteado acabou contando tudo isso pro Carlinhos, um garcon do boteco da esquina.


Ouvindo:
Coralie Clément - Un beau jour pour mourir

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Eu quero a sorte de um amor tranquilo, com sabor de bombom mordido


“I don’t believe that Darwin was god
but I’m very thankful to him”


Eu disse que não era darwinista, mas que Darwin explicava tudo. Ele riu. Um sorriso mais de empatia que de deboche. Falavamos dos defeitos do meu perfeccionismo. De como gosto de tudo certinho, cada coisa no seu lugar, leio manuais de instruções, mas tem horas que não dou a mínima pra organização.
Acho que não existe manual para tudo, não existe maneira correta de agir em todas as situações. Não somos máquinas, não fomos feitos em série. O que dá certo para uma pessoa, o que é bom pra alguém, o que vale naquele momento e naquela situação, pode só servir ali. 
Eu não sou surpreendente, sou até bastante previsível, só que entendi com o tempo que cada momento, situação, pessoa e lugar precisa de uma forma de agir, não existe atitude pasteurizada ou fórmula mágica. É necessário agir de acordo com a situação e o momento. Você pode sentar na mesa de um pé sujo com os amigos calçando de havaianas, falando palavrões, beliscando os petiscos com as mãos enquanto canta batucando na mesa. Mas se for um jantar com o chefão, num restaurante mediano, vai ser diferente. Da mesma forma que ninguém faz as mesmas piadas para todas as pessoas do seu convívio. Imagina contar os mesmos segredos pra todo mundo? Tem gente que não merece certas atenções, tem gente que merece todas as atenções do mundo. Situações diferentes, posturas diferentes. 
Eu não sou surpreendente, nem tenho a pretensão de surpreender, só tenho esse defeito de nem sempre conseguir disfarçar a espontaneidade, de às vezes ser transparente demais. E as pessoas normalmente (e talvez até naturalmente - Darwin, cara) encobrem sua espontaneidade. Mas eu muitas vezes quando percebo, como num reflexo, já falei, já fiz, já ri. E aí já era.
Ele sorriu de novo. Eu sorri de volta. Rimos juntos. 


Ouvindo: Cascadura - Senhor das moscas


*Citação no início da postagem tirada da música do Letuce: Darwin's Fairy Tale

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Aqui você fala sobre o que bem entender, mas eu vou achar mais legal se você falar sobre o assunto do post. E se você vier só pra fazer propaganda, mando um monstro puxar seu pé de madrugada!