Você não está sendo filmado. E daí?


A chamada de um programa de TV pergunta: se pudesse trair sem ser descoberto, você trairia? Curioso como tem gente com essa capacidade camaleônica de ser, mudando de cor para se comunicar e ficando parecidas com algo que na verdade não tem nada a ver com o que são (e como saber como são de verdade?). Se não houvesse chance de punição (nos diversos sentidos que essa palavra pode tomar) você seria a mesma pessoa que é, continuaria fazendo o que considera correto? Torço para que a resposta seja sim, porque eu acredito que existe uma coisa maior que move as pessoas para o bem e essa "coisa" se chama caráter
Muita gente pode considerar uma ingenuidade, mas acredito piamente que quando alguém tem caráter, vai fazer o que é certo independente de ter alguém olhando. Se não houver bônus ou qualquer espécie de compensação, se não existir nenhuma condenação ou algum castigo, quem tem caráter vai continuar sendo aquilo que podemos chamar de gente boa.
Na minha humirde opinião, o caminho para quem procura ser uma pessoa melhor passa por essa premissa. É possível que tenham alguns atalhos que também levem para o caminho do bem e talvez todos sejam aceitáveis, afinal somos livres para escolher qual caminho vamos seguir (e encarar as consequências das nossas escolhas, claro). 
Essas palavras não valem grades coisas, mas se você é capaz de honrar os compromissos que assume mesmo quando ninguém está vigiando para conferir se você está andando na linha: eu te admiro, você possui essa coisa preciosa chamada ética. 

Ouvindo: 

Crônicas do amor desfeito - #02


Cansou de se lamentar. Deixou o dinheiro no balcão e saiu determinado a não mais afogar as mágoas, não queria passar seus últimos dias lamentando os não feitos. Puxou da memória os arrependimentos que conseguia se lembrar e lá estava ela. Ah, e como ela sempre esteve presente em sua memória por todo esse tempo!
A primeira vez que a viu foi aos 19 anos, na biblioteca da faculdade. Ela estava pagando a multa por devolver os livros após o prazo e ele pensou logo que ela devia gostar de ler. “Que voz linda”, pensava consigo mesmo enquanto esticava o pescoço para ver em sua ficha a data de nascimento dela. “Será que aquilo é um oito ou um seis? Porque se for de leão não tem nada a ver comigo”. Já sabia o nome, o curso que fazia, deu o próximo passo que foi tentar se matricular em alguma eletiva que ela cursava. Foi chegando e com bom papo, conseguiu a atenção da moça puxando assunto sobre a tatuagem da menina da primeira fileira. Quinze minutos de conversa bastaram para que ela partisse seu coração ao dizer que seu namorado também torcia para o Fluminense. Namorado. Claro, ela tinha que ter um! Ele preferiu tentar esquece-la.

- Leão! Sabia que ia ter algum problema.

Os semestres foram se passando, outras garotas foram e vieram. Até a formatura veio. Era hora de buscar um trabalho, iniciar oficialmente a fase adulta da vida. Soube que ela havia se casado com o marrento que fazia Ciências Contábeis. Teve outras, mas não esquecia aquela com quem conversou por quinze minutos, que olhava de longe todos os dias.
Podia ter lutado por ela? Sim, podia. Mas foi uma decisão dele não fazer. Ela era feliz e ele não queria que ela sofresse. Por vezes pensou em se declarar. Era melhor que ele, sabia disso. Ela merecia mais, mas nunca ousou arriscar  felicidade dela para realizar um desejo próprio.



Crônicas do amor desfeito - #01


7:30. O despertador toca. Ainda sonolenta, estica seu braço pelo lençol e não encontra o corpo que outrora acariciava ao acordar. Era sua primeira manhã sem ele. Velhos hábitos são difíceis de mudar, pensou sem nem saber ao certo como levaria sua vida dali pra frente. Em cima da mesinha de cabeceira ainda estava o porta retrato com a foto da primeira viagem que fizeram juntos.
- Que merda..., murmurou.
Devagar sentou-se na beirada da cama e enquanto retirava a foto do porta retrato, só conseguiu se lembrar que deixou de fazer um cruzeiro com as amigas para ir naquela viagem. Amassou a foto, foi jogar na lixeira do banheiro e sorriu: pela primeira vez depois de muito tempo não precisaria reclamar da tampa da privada levantada ou do piso do banheiro molhado. 
Com um leve sorriso de satisfação, quis vestir uma das roupas que não usava só para agrada-lo. Havia um vazio no guarda roupas, mas o espaço deixado pela falta das roupas dele foi preenchido pelo cheiro que ele não levou embora consigo. Instintivamente respirou mais fundo porque adorava aquele perfume! 
Foi tomar seu café, se deu conta de que a partir de agora ela mesma teria que fazê-lo. Colocou água na cafeteira e foi pegar o jornal, ia poder ler sem que estivesse todo bagunçado. Café pronto, mesa posta, deixou pra lá. Sentiu falta de companhia à mesa, de alguém com quem pudesse conversar. Ela sabia que tinha feito a coisa certa, mas não sabia ainda lidar muito bem com o sentimento novo, que era um misto de saudade e alívio. Ele estava lá mesmo sem estar.
Atrasada pro trabalho, terminando de se maquiar, em frente ao espelho suspirou e disse para si mesma que tinha sido melhor assim. 
- Certas histórias precisam de um ponto final. Se o destino quiser, a gente começa uma nova história juntos, mas essa acabou aqui.



Breve diálogo sobre o Bolsa Família


- Ô, David! Vai cobrir suas vergonhas, menino!



- Boa tarde.
- Boa tarde. Eu tô precisando de uma declaração de que meu filho estuda aqui.
- A senhora precisa de uma declaração específica ou só quer mesmo que conste que ele é nosso aluno e a série que está cursando?
- É pra renovar o Bolsa Família.
- Perguntei exatamente porque a declaração para o Bolsa Família e para o projeto tal são diferentes.
- É, moça, a coisa não tá fácil não. Pra gente que ganha só um salário mínimo esse dinheiro é uma benção!
- Ajuda bastante, né?
- Se não tivesse Bolsa Família não ia ter como comprar leite pras crianças todo dia, não ia ter carne no prato.
- E ele é bom aluno?
- Diz ele que é. Passou de série, a diretora nunca me chamou pra reclamar de nada dele! Eu mesma não tenho tempo de vir à escola pra conversar com a professora, pra ver se ele se comporta direito com os colegas, se faz os deveres certo por causa do trabalho. Minha patroa fica pra morrer quando eu peço pra sair mais cedo.
- Sei como é. A senhora trabalha até que horas?
- De 7 às 5. Até sair de lá e chegar aqui, a escola já tá fechada.
- E quando chega em casa, a senhora não olha o caderno dele, não conversa sobre a escola...?
- Rum. Não tenho tempo pra isso não, menina. Eu tenho ele e mais dois menores. Quando chego em casa tenho que dar banho nos dois e fazer a janta. Aí já tá na hora da novela, que eu também sou filha de deus.
Aí a irritante moça do balcão, fala só de sacanagem:
- A senhora viu o jornal ontem? Passou uma reportagem dizendo que o governo vai complementar o Bolsa Família. Estão pensando em aumentar o benefício para os bons alunos. Se não me engano são 60 contos se o aluno tiver média acima de 6,5 e mais 60 se tiver bom comportamento.
- Passou ontem?! No Jornal Nacional?
- Não lembro agora se foi na Band ou no SBT... mas a ministra dizia isso na reportagem.
- Então é bom botar os meninos pra estudar.
- É, mas eles não decidiram se vai ser assim mesmo ou se vai ficar do jeito que está. E se   for aprovado na reunião deles, ainda tem que ser aprovado na Câmara, no Senado, um monte daquelas discussões chatas de polít....
- Ah, mas eu já vou me adiantando e vou botar os três pra estudar!



Qualquer dia ainda apanho e não sei porquê.


P.s.: Até onde minha ignorância sabe (oi?) não existe projeto do governo federal que pretenda vincular o Bolsa Família ao rendimento escolar do aluno. Existe um projeto de complementação do Bolsa Família, se quiser saber do que se trata clique aqui. Minha opinião pessoal é a de que o Bolsa Família, ou se preferirem o Brasil Sem Miséria, é uma Ferrari usada na velocidade de uma carroça (querendo, é possível fazer muito mais). Eu não tenho uma solução pra isso, sou palpiteira e só.


Ouvindo:

Só paz


Curiosamente o pessoal do Google não deletou os perfis de quem usava o Google Reader, então o que foi compartilhado antes da mudança continua lá. Descobri isso por acaso e como um dos meus nomes é nostalgia fui ver quais tinham sido as últimas coisas que compartilhei com quem caísse nos meus itens compartilhados. Encontrei coisas boas lá, coisas que realmente mereciam ter sido compartilhadas. Outros itens me fizeram perguntar "onde eu estava com a cabeça pra compartilhar um troço desses".
Mas é fim de ano, e com ele vem o natal.  Desnecessário dizer mais uma vez o quanto eu não gosto de finais de ano. Finais de ano não me lembram coisas boas e nada ao meu redor permite que eu me comporte como se estivesse numa data qualquer.  Fim de ano é algo muito Simone-de-terninho-branco-cantando-'Então-é-Natal' (e além da roupa roubada do especial do Roberto Carlos - outro porre, ela também não deixa em casa um cagaio de 'harehama Hiroshima' - ?? - no fim da música), versão brazuca para War is over, que mesmo sendo fã dos Beatles, passei a desgostar por tabela. Quando ouço 'so this is christmas' ou 'então é natal" já me dá uma certa vontade de correr.
E foi justamente vendo um dos meus itens compartilhados que encontrei algo bem mais legal pra ser usado como mensagem de fim de ano. E era algo do John. John Lennon sem so-this-is-christmas nessa época é algo de inenarrável valor. Se bem que não sei se é mesmo dele, mas tá valendo, porque o mundo tá tão sinistro que qualquer mensagem de paz tá valendo muito.



Aceitei isso como um presente de fim de ano do finado GReader. Não vou considerar violência valendo só para agressões físicas, mas para as palavras e principalmente as ações. Preciso lembrar mais vezes que as pessoas que não querem o meu bem (e que tem uma vida tãããão interessante que dedicam algum tempo a isso) não sabem como agir se a atitude babaca não for devolvida. Assim sendo, o que posso desejar a mim mesma no próximo ano é não devolver as coisas ruins mesma moeda. Rir é bem melhor. Tentei fazer isso em 2011 mas nem sempre tive sucesso, vou procurar aprimorar a técnica para 2012. Brincar de Tistu.
Que 2012 seja um bom ano pra você!



Ouvindo: Oasis - I'm Outta Time

Sou do tempo em que havia brincadeiras de criança

Houve um tempo onde as crianças brincavam na rua. Me lembro bem de andar de bicicleta, jogar queimado, furinguinho de gato, as mais variáveis versões de pique (pique-esconde, pique-pega, pique-bandeira, pique-alto...) e outras brincadeiras. Na verdade, a frase inicial deveria ser outra: houve um tempo onde as crianças brincavam.
Criança de hoje em dia brinca? Fora videogame, elas jogam vôlei, futebol, basquete, handebol, tênis, remam, nadam... mas tudo isso em escolinhas profissionalizantes. E essas escolas existem para quase tudo e são “para crianças de todas as idades”, como diz a propaganda de uma delas. Isso já se tornou algo muito comum pra me causar espanto, mas posso te dizer que ainda me impressiono de certa forma. 
Me impressiona que não se brinque mais de ser modelo, que invés disso as crianças estejam frequentando cursos para aprender a modelar desde as fraldas. Me impressiona que bolas de futebol não estejam mais entre os brinquedos mais desejados no fim de ano, não pelo fato de as crianças não quererem mais, mas por não serem mais considerados brinquedos e sim uma espécie de investimento. 
Ou eu sou completamente inadequada para a sociedade ou alguém tem que rever as diretrizes desse negócio de maternidade/paternidade porque, numa boa: pais de hoje em dia, vocês estão fazendo isso errado. Se eu fosse mãe de santo, taróloga ou qualquer uma dessas pessoas que dizem prever o futuro, poderia afirmar com toda certeza que a previsão para as próximas gerações não são muito boas.


  
Hoje é dia de brincar de garantir o futuro da família, bebê!

Alguns trocados


Joelson cabisbaixo, com cigarro entre os dedos, sentado na escada. Levantou. Abriu a carteira e viu que só tinha alguns trocados. Trocados. Pensou numa metáfora que explicasse sua situação, tantas boas oportunidades foram trocadas por outras que no fim não valeram tanto a pena. Lembrou do que não trocou, das coisas que não abriu mão, de tudo pelo que lutou e não valeu a pena.

Trocado. Quando chegou em casa já de madrugada e viu que havia sido trocado. Sua esposa saíra de casa, o abandonara, levando os filhos e deixando apenas um bilhetinho. Trocado por um pedaço de papel, Joelson naquele momento acordou e percebeu que deveria ter acordado antes. Entrou no apartamento vazio e só encontrou um “cansei, não dá mais”. Por que ela tinha que ter sido tão sucinta? E as coisas que ele teve que aguentar e abrir mão por causa do relacionamento, não importavam? Abateu-se num misto de fleuma e ressentimento.
Saiu das escadas, voltou ao apartamento. Sentou no sofá da sala e por lá ficou até o amanhecer. Preferiu não ir procurá-la. Dentro de toda sua mágoa, não ligou, não tentou contato. Deixou o tempo passar na esperança de que suas feridas fossem curadas por ele. As semanas foram se passando, a barba por fazer já começava a ficar mais espessa e ele decidiu que era hora de tomar uma atitude, de mudar e ia começar fazendo a barba. Entrou no mercadinho da esquina, comprou um barbeador novo e na hora de pagar se viu novamente diante de trocados.
Relembrou o que vivera e decidiu que não queria trocar o que vivera por nada.

Relacionamento sério



Moravam juntos já fazia mais de dois anos, e numa quarta-feira ela jogou pra ele uma revista enquanto tomavam café da manhã:
- Tá vendo?
Ele leu o enunciado da reportagem e não sabia bem o que responder. Um casal famoso tinha terminado seu relacionamento porque um adorava redes sociais e o outro era tecnofóbico. O que ela esperava dele? Logo dele que só ligava o computador para planilhas e e-mails!
- Mas eu não vejo sentido no Twitter, amor - procurou se explicar.
- Tenta.
E para atender o pedido quase intimação de sua querida, ele foi tentar. Sentou no computador e criou seu perfil no microblog. Seus amigos ficaram felizes em tê-lo por ali. No primeiro dia saiu para o trabalho e a cada sinal vermelho procurava algo que pudesse postar. Postou foto do cara que faz malabarismo, do menino que vende balas, teceu comentários, interagiu e começou a gostar da coisa. Semanas depois, ele mesmo se dizia tuiteiro.
Ela se sentiu feliz ao ver não só que ele tinha se esforçado para fazer parte do mundo dela, mas por perceber que tinha gostado. Ele parecia mais animado no relacionamento ao ver através da rede o quanto ela o admirava. Todos os amigos percebiam que o relacionamento do casal tinha melhorado, os dois conversavam mais, se compreendiam mais, tinham mais assunto, passavam mais tempo pensando um no outro.
Pouco tempo depois alguém sugeriu que tivesse um perfil em outra rede social, onde poderia ir além das frases curtas e lá foi ele se aventurar em mais um campo desconhecido. Pela experiência anterior aceitou a sugestão com boa vontade e se viu novamente diante do computador criando seu perfil. Pensou que ela iria gostar de ver a surpresa quando voltasse do trabalho, montou um álbum com fotos dos melhores momentos que tinham passado juntos desde que se conheceram, colocou na legenda de cada foto uma frase retirada das músicas ou dos filmes preferidos dela. Os amigos estavam curtindo cada foto postada, comentando sobre como tinham sido feitos um para o outro, quando ele finalmente foi ao perfil dela para adicioná-la e escrever algo em seu mural.
Deu um murro na mesa! Não acreditara no que viu. Olhou de novo e puto da vida ligou pra ela.
Por telefone, com olhos mareados, raiva na voz e coração partido, pôs um fim na união que completaria três anos, depois de ver que ela havia marcado apenas como namoro aquilo que ele considerava um relacionamento sério.
Postou o verso de uma música com o link pro You Tube: “She's going to smile to make you frown, what a clown!”, desligou o celular, saiu batendo a porta, preferiu descer pelas escadas. Ainda meio desnorteado acabou contando tudo isso pro Carlinhos, um garcon do boteco da esquina.


Ouvindo:
Coralie Clément - Un beau jour pour mourir

Eu quero a sorte de um amor tranquilo, com sabor de bombom mordido


“I don’t believe that Darwin was god
but I’m very thankful to him”


Eu disse que não era darwinista, mas que Darwin explicava tudo. Ele riu. Um sorriso mais de empatia que de deboche. Falavamos dos defeitos do meu perfeccionismo. De como gosto de tudo certinho, cada coisa no seu lugar, leio manuais de instruções, mas tem horas que não dou a mínima pra organização.
Acho que não existe manual para tudo, não existe maneira correta de agir em todas as situações. Não somos máquinas, não fomos feitos em série. O que dá certo para uma pessoa, o que é bom pra alguém, o que vale naquele momento e naquela situação, pode só servir ali. 
Eu não sou surpreendente, sou até bastante previsível, só que entendi com o tempo que cada momento, situação, pessoa e lugar precisa de uma forma de agir, não existe atitude pasteurizada ou fórmula mágica. É necessário agir de acordo com a situação e o momento. Você pode sentar na mesa de um pé sujo com os amigos calçando de havaianas, falando palavrões, beliscando os petiscos com as mãos enquanto canta batucando na mesa. Mas se for um jantar com o chefão, num restaurante mediano, vai ser diferente. Da mesma forma que ninguém faz as mesmas piadas para todas as pessoas do seu convívio. Imagina contar os mesmos segredos pra todo mundo? Tem gente que não merece certas atenções, tem gente que merece todas as atenções do mundo. Situações diferentes, posturas diferentes. 
Eu não sou surpreendente, nem tenho a pretensão de surpreender, só tenho esse defeito de nem sempre conseguir disfarçar a espontaneidade, de às vezes ser transparente demais. E as pessoas normalmente (e talvez até naturalmente - Darwin, cara) encobrem sua espontaneidade. Mas eu muitas vezes quando percebo, como num reflexo, já falei, já fiz, já ri. E aí já era.
Ele sorriu de novo. Eu sorri de volta. Rimos juntos. 


Ouvindo: Cascadura - Senhor das moscas


*Citação no início da postagem tirada da música do Letuce: Darwin's Fairy Tale