Pois é...
Ouvi um "Até que enfim!". Veio de uma senhora com um crucifixo no pescoço que estava indo para o ponto de ônibus, mostrando que estava aliviada com a chegada de uma viatura da Guarda Municipal. De dentro dela saíram dois guardas, já com cacetetes em punho. Esboçando um sorriso feliz, ele continuava imóvel. Dormia na calçada como se fosse um príncipe. Ao seu lado havia uma garrafa de alguma cachaça barata que, provavelmente, horas antes bebera como se fosse a última. Alguém, usando o mesmo verbo que se usa para retirar um saco de lixo, gritou para que os guardas recolhessem logo o dito cujo, que dormia junto ao muro. Acordou um tanto desnorteado. O calor e os raios do sol que batiam em seu rosto não foram suficientes para que despertasse, mas os tapas de um dos guardas, sim.
Manhã típica. Tomava meu café da manhã na padaria, na companhia Dona Célia, uma senhora por volta dos 60 anos que costuma fazer seu desjejum com o marido no estabelecimento do simpático Seu Luís, vulgo Portuga. Conheci Dona Célia ali mesmo, meses antes, num dia em que ela e o esposo chegaram à padaria antes de mim e compraram o último exemplar do jornal que costumo ler. Me aproximei da mesa deles e perguntei se poderia olhar o caderno de informática. Me convidaram para sentar, acabei fazendo uma leitura dinâmica praticamente do jornal inteiro enquanto comentava com o simpático casal as manchetes do dia, num papo bem agradável para uma manhã de segunda. A partir desse dia, passei a tomar meu café na companhia deles quase que diariamente.
Como vinha dizendo, na mesa da padaria eu tomava um suco de laranja com pão de queijo na companhia de Dona Célia, enquanto passava o olho sobre as manchetes que o jornal daquele dia estampava. O dono da padaria e um de seus funcionários foram até a porta para observar mais de perto, como se o vidro blindado não oferecesse visão panorâmica para a ação dos guardas de qualquer ponto de dentro do comércio. Ouço frases lacônicas vindas da mesa ao lado, onde estava um cara de aproximadamente 45 anos, que, olhando por baixo dos óculos, deixava claro seu contentamento por não ter que passar por aquele homem quando saísse.
Dona Célia começou a falar do que ela chama de apartheid social, da luta de classes, da má distribuição de renda e pôs no capitalismo a culpa pela situação lastimável de tantos filhos da pátria que, assim como o mendigo na calçada, por terem nascido pretos ou quase pretos, não costumam ser acolhidos com amor materno por sua mãe gentil, já que esta só trata com amor materno a pequena parcela que conseguiu ser aprovada pelo regime de cotas para filhos. Disse ainda que a sociedade, movida pelo preconceito, marginaliza e condena uma parcela da população que não tem acesso ao que os mais ricos consideram padrão de cultura e que a classe média aceita tudo o que a "elite" decreta. Para terminar, antes de levantar disse que achava a ação dos guardas um absurdo, uma afronta ao direito de ir e vir e que o mendigo era uma vítima do preconceito da sociedade.
Não respondi, só escutei tudo o que ela disse.
Dona Célia teve que ir, estava na hora de dar aula. Pude ver antes dela atravessar a rua que ao passar perto do mendigo combalido que ainda estava sendo retirado pelos guardas, abraçou a bolsa com força.
Pois é.
Ouvindo:
Kassim + 2 - Homem ao mar
4 Vozes do além:
Aqui você fala sobre o que bem entender, mas eu vou achar mais legal se você falar sobre o assunto do post. E se você vier só pra fazer propaganda, mando um monstro puxar seu pé de madrugada!